sábado, 23 de agosto de 2008

Ama em pé e samba na chão

Enquanto houver um coração no chão haverá um bordel em pé.
E haverá um malandro, sambista da dor – samba-dor-samba-dor -
recolhendo cacos do pobre pierrot, – com-amor-sem-amor.


Enquanto houver uma mulher em pé haverá um homem no chão.
E haverá o samba pro sambista – dor-que-samba-samba-dor, e os cacos do palhaço sofredor – sem-amor-sem-sabor.


Enquanto houver uma emoção de pé haverá uma razão no chão.
E haverá a dor, do samba e do amor – samba-mor-sangra-dor,
e os cacos do malandro – samba-dor-dor.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Filando o finado

Acordo cedinho, junto todos os escritos burocráticos que ajudaram a desmatar algum restinho de floresta e saio de casa com um sorriso esperançoso no rosto.
Dois ônibus, um pouco menos de camada de ozônio no mundo e uma hora a mais sem samba na minha vida.
Ficha 873b.
Tempo estimado para o atendimento: entre 30 minutos (caso o santo homem da fala feia tivesse algum poder nesse país) e 6 horas (caso continuem funcionando apenas 2 dos 38 guichês existentes no local).
Lá da cadeirinha do fundo eu vejo meu número brilhar no luminoso. Foram só 5:45h na fila, ainda bem que não foram 6.
Me encosto no guichê 2 e vou abrindo minha pastinha enquanto a moça já vai falando:
- Nome. – Diz ela com cara de concreto.
- Severino dos Santos – Mas não de todos (salve meu São Judas Tadeu e São Jerônimo Emiliano).
- Documentação. – Preparando o bate-bate de botões.
- Ta aqui, minha senhora. – E tava mesmo.
- Cadê o comprovante de quitação da ultima parcela do terno? – Com a mão de unhas vermelhas semi-descascadas sobre minha pastinha.
- É que eu ainda não terminei de pagar, mas minha mulher disse que paga as 7 parcelas que ainda faltam até o fim do ano. – Tremo e tremulo.
- Eu não posso liberar o seu atestado de óbito sem a documentação requerida, meu senhor – Já anunciando o 874b no luminoso.
- Mas moça... - ...
- Meu senhor, traga a documentação direita num outro dia e como é a sua primeira vez o senhor terá direito até a uma autopsia, caso os médicos já tenham acabado a greve. – Ela consegue falar tudo isso sem perder o pouco de ar que cabe no corpo espremido pela calça 4 números menor.
- Ta bem, moça. – Meu sonho de melhora vai ficar pra outro dia.
- Próximo! - !

domingo, 10 de agosto de 2008

Quando chia a panela

Daqui do meu quarto eu posso ouvir a panela chiar. Aí não demora muito pra uma canção-chorada ecoar triste aqui em mim. Vem batendo parede-em-parede e desagua seca nos meus ouvidos.

Quando eu era menor, conseguia fingir que não me importava, brincava com barquinhos de papel que navegavam nas lágrimas da minha mãe. Era mais divertido do que brincar na banheira porque água de lágrima é salgada.

Eu tento trancar a porta do meu quarto, mas não adianta, alguém deu a chave para a panela, e ela entra, e entra o choro, e entra a tristeza, e entra-e-fica, e as vezes só o que não entra é a canção, mas o resto entra, e entra-e-fica. Quando é assim, eu rezo pra Santo Expedito (a minha causa pode não ser justa, mas tenho urgência), rezo pra ele me salvar, rezo pra ele tirar tudo que tem na minha cabeça, tudo-tudo, até o que tem de bom, mas quando eu abro o olho, depois da reza, eu vejo que não fui salvo, e que a panela ainda ta aqui, a panela eu não vejo, mas sei que ela ainda ta aqui.

O que me consola é que a panela bate-e-bate, mas nunca me mata. Às vezes eu até gostaria que ela me matasse, mas ela não mata, tem hora certa pra parar, pára na hora da graça, e pára com precisão, meio-dia é a hora sagrada.

Quando a panela pára, e pára o choro, e pára a tristeza, aí a gente senta à mesa, eu dou um beijo em minha mãe e procuro não olhar pros olhos dela, vermelho é uma cor que sempre me deixa triste.

A gente senta ali e ela canta, mas canta sem o choro, sem a tristeza e sem a panela. E não precisa de mais nada, a gente só aproveita esse tempo sorrindo em terra-firme. Em terra-firme não tem panela, nem tristeza e nem choro, tem ela, eu e a canção, às vezes tem o almoço, mas quando não tem eu já nem me incomodo mais.